Do outro lado das teclas

Uma história a quatro mãos, separadas por um mar.

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    São Paulo? 11 é São Paulo?
    É.
    Estranho. Muito estranho. Talvez engano.

    Sim?
    ...
    Não acredito, compadre! Tás em São Paulo...
    ...
    Vieste sozinho?
    ...
    Ah ah ah. Sim, lembro-me.
    ...
    Pois é.
    ...
    Estou.
    ...
    Não, homem, não dá. Agora não dá.
    ...
    Negócios, claro. Importantíssimos.
    ...
    Ah ah ah. Não, não posso.
    ...
    Gostava. Já te disse que sim. Já tínhamos falado nisso.
    ...
    Atão anda cá ver. Vês logo do que é que se trata.
    ...
    Não, homem.
    ...
    Aí, talvez. Talvez de fim de semana.
    ...
    Não, de avião. Claro.
    ...
    Sim. Um Chevrolet Celta.
    ...
    É, é uma espécie de Corsa.
    ...
    Não, não dá. Mas eu telefono-te. A gente combina qualquer coisa.
    ...
    Atão vá, grande abraço.

    Ih, que olhos são esses?
    Se bem entendi, o senhor veio a negócios. Pode me dizer que negócios?
    Posso apenas dizer que são importantíssimos.
    Sei. E mandou seu amigo vir verificar. O quê? O negócio?
    Sim, o negócio.
    Olha lá!
    Agarrou-a e disse-lhe ao ouvido:
    Neste negócio, ninguém dá palpite a não sermos nós, ainda não percebeu?
    Então que coisa é essa de avião, de final de semana...
    Não podemos ir um final de semana ao Rio Grande do Norte?
    Para me mostrar para o seu amigo?
    Ok. Se é assim que você pensa, não vamos.
    Mas afinal, o que ele queria?
    Ah, uma velha promessa nossa de viajar pelo sul de carro.
    Ele tá indo?
    Sim. Falou com o meu irmão antes de vir, soube que eu estava cá e agora estava a desafiar-me.
    E você não vai? Isso não é promessa?
    Já sabe que não. Você não acabou de me dizer que vinha todos os dias?
    É. Se eu puder. Sabe que nem tudo depende de mim.
    Sei. Por isso perguntei.
    Então não vai?
    Não. Ouviu o que eu disse ou não?
    Tá.
    Agora me dá uma sugestão para hoje. A onde apontarei o Celta?

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    Uma cadeira de dentista...
    O que disseste?
    Uma cadeira de dentista... é o que me vem à cabeça.
    Cadeira de dentista? Não estou entendendo...
    Você me faz lembrar uma cadeira de dentista!
    O QUÊ? – primeiro foram as duas almofadas, depois murros, depois... bem depois, ela estava debruçada sobre ele agitando o braço direito mais uma vez, sem cuidar do risco que corria, ao se exibir de peito aberto.
    Larga-me, pára!
    Mas ele se servia dos frutos desbocadamente. Avidamente, como se a noite tivesse sido apenas um prenúncio de festa.
    Olha as horas!
    Cale-se e me beije.

    Como é? Ainda bebe café comigo?
    Só se fôr rápido. Tenho que ir pegar os meninos.
    Claro. Café. Café. Café. Estou na terra do café e não beberia os meus cafés. Ah, mas espera. A máquina. Lembra da máquina?
    Pois é. Até comprámos café.
    Então, se arruma que eu vou tratar do cafézinho.

    Agora me conta, o que é que você queria insinuar com essa coisa de cadeira de dentista?
    Ah, ah, ah. Não se esqueceu dessa?
    NÃO! Claro que não.
    Eu depois lhe conto, é uma longa história.
    Sei. Teve uma namorada dentista, tá me comparando à cadeira...
    Qué isso? Ficou boba? Não. É uma história muito diversa. Eu lhe conto esta noite.
    Ah, já tá garantindo a minha presença?
    Não. Estou apenas reclamando, mas também sei que essas noites não vão ser sempre assim.
    Pois é. A vida real.
    Não sei se é a vida real. Sei que é o tal paradoxo da liberdade. O seu caminho não é livre como o meu. E o meu só é livre enquanto não tiver compromissos...
    Mas você não é livre. Nem pensa. Nem imagina. Nem sonha. Só pode andar por aí mas nada de frescura, viu?
    Eh eh. O mosquito à volta da luz. O errante agarrado ao Km 0. Mas há uma coisa que você me poderia dizer. É se esta noite vem ou não...

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    Pousou os artigos essenciais sobre o banco como sempre fazia.
    Mapa, caderninho preto, esferográfica.
    Maço de tabaco no tablier. Ready for action.
    Ah, faltava a máquina fotográfica.
    Uma daquelas descartáveis chegava.
    E o telemóvel. Comprar um chip ou um telefone.

    Agora é que vou saber como são as estradas aqui.
    Ia andando sem norte, melhor dizendo com um rumo nordeste.
    Já tinha passado por Sobradinho. Continuou pela estrada. Planaltina.
    Circulou. Apeou-se.
    Foi pelo café, ouviu os circunstantes.
    Errou pelas ruas, com a máquina no bolso. O que menos queria era ter ar de turista.
    Sempre que andava ao deus-dará, tinha a consciência de que perdia lugares históricos.
    Isso acontecia em Portugal. Haveria de acontecer aqui.
    Nunca fora por folhetos, por propaganda, por motivos culturais. Andava ao sabor das marcas na paisagem. Às vezes, atrás de temporais. Tinha só que ter a noção das horas a que o sol de punha. Aqui mais bruscamente do que lá. A noite não lhe servia de muito para ver coisas e podia colocá-lo dentro de alguma cratera na estrada.
    Rodou de novo, agora para leste. Formosa. Mais uma vista de olhos, os locais parecem-se uns com o outros.
    Meia-volta.
    Contornou Brasília pelo nascente. DF 130.
    Depois por sul. BR 251.
    Horas de almoço.

    Depois de um repasto, não resistiu.
    Pegou no telefone.

    Brincadeira parva. Ela ficou triste e desconsolada.
    Pegou de novo no telefone.
    “Sim? Mas afinal que número é esse? Tem celular?”
    “Claro. Comprei um chip da TIM.”
    “Ah. Mas e o telefone? Tinha um?”
    “Claro. Tenho um telefone que aguenta qualquer chip GSM.”
    “E o que me vai dizer? Que afinal só volta no final da semana?”
    “Que ao cair da noite, estarei arrumando o carro na garagem do prédio. Só isso!”
    “Não vai se mandar? Por essas estradas, no tal do caracoroísmo?”
    “Não. Ficarei lá no apartamento, sairei para jantar só ou acompanhado e voltarei para descansar. Tenho dormido pouco, sabe?”
    “Ah sim? Não me diga!”
    “É. Noites perturbadas. Muito sonho. Pouco descanso.”
    “Sonho? Tem sonhado muito?”
    “Tenho. O que é pior, é o que o sonho parece bem real... fatigante, sabe?”
    “FATIGANTE?”
    “Sim, uma fadiga boa, depois de tanto sonhar acordado... e às vezes até um pesadelo em cima de mim. O pior é que fico querendo mais. Mais sonhos e mais pesadelo...”
    “Ah é? Eu lhe digo que pesadelo. Me aguarde.”
    “Ah, aguardo sim. Ficarei lhe aguardando. Agora você sabe o número. Qualquer coisa me liga. Vou rodar mais um pouco até escurecer.”

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    Então falamos de um círculo com centro na Rodoviária. Não é ali o Km 0? Andarei preso ao poço, como dizia Saint Exupéri. Uma corda presa a esse marco imaginário, não me permitirá mais do que um certo círculo máximo? É isso?
    Mais ou menos.
    Ou como os mosquitos à volta da luz...
    Lá tá você...
    Ao menos um café tomamos, não?
    Claro.
    Ah, e já agora deixa-me numa agência de aluguer de automóveis, pode ser?
    Claro.

    E então, já pensou no rumo que vai tomar?
    Ainda não. Provavelmente as primeiras voltas serão de exploração. Navegação à vista. Uma espécie de caracoroísmo nas encruzilhadas. Faço isso muito lá na nossa terra.
    Nossa terra?
    E não é? Não é nossa? Você veio de lá em peças e só foi montada aqui. Tal como antes, nossas pré-peças vieram por esse mediterrâneo fora e ali se montaram. Somos todos de todo o lado. O homem em cada avanço se mistura, em cada permanência se apura.
    E em cada recuo?
    Em cada recuo, uma derrota. Definitiva ou não.
    Então você não vai recuar...
    Não, todas as manobras serão para vante. Nada de máquinas à ré.
    Huuum, tá certo.
    Já terminou? O café, claro.
    Já. Vamos?
    Vamos.

    Ok, it’s the end of the line.
    O QUÊ?
    Então, estou vendo ali Aluguel de Automóveis.
    PÁRA!
    Eu? Ainda nem tenho o carro, já quer que eu trave?
    Não. Quero que você não suma.
    Não se preocupe, vou rodar por aí. Como farei para ver-te? Isto é, ver-te-ei ainda hoje? Amanhã? No outro dia? Você é que tem que me dizer. Eu tenho todo o tempo do mundo, ou pelo menos todas as horas de Brasília...

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    E beijaram-se, beijaram-se, rolaram, ela vestida ele não.
    Temos que dar um jeito nisso – dizia ela sorrindo e olhando para onde não devia.
    Tá esperando o quê? Ah, e mais, não fizemos uma aposta? Você não perdeu? Qualquer coisa com escravatura...
    Sei. Sei. Não sei se chegámos a fazer mas me dou como derrotada. Pode mandar.
    Ele mandou. Mandou como um rei de bom senso. Sábias ordens para que fosse obedecido.

    Meu amo, parece que me desempenhei da tarefa. E agora?
    Chega cá. Te darei mais trabalhos em seguida. Mas primeiro, encosta aqui.
    Ela encostou-se no peito dele, de cabeça à banda, num gesto muito dela.
    Diz-me. Em que pensaste enquanto gritavas aos passarinhos?
    No regresso das naus. No torna-viagem.
    Calculei. Temos três semanas para viver. Depois se verá o que acontece.
    É. Aproveitemos então.
    Eu estive pensando também nisso. Quando falavas que eras errante e solitária, não te passava pela cabeça encontrar alguém ainda mais errante do que tu, pois não?
    Não. Acho que não. Também não era a pensar em encontrar alguém que dizia isso. Se era solitária...
    Pois é. Mas não tanto assim. Não tanto errante, nem tanto solitária. Errante mas com compromissos. Solitária mas com família.
    É. Tenho meu trabalho, meus filhotes...
    Já eu tanto posso estar aqui como ali. Como dizia um amigo meu, chego quando chego, abalo quando abalo. Tenho lá a minha gente, pois tenho. Mas não responsabilidades imediatas. Mesmo o monte pode ser gerido à distância. Não há porcos para dar de comer, vacas para dar ração... Os graus de liberdade são inúmeros. Sempre fui avesso a compromissos, o que me conduz a um paradoxo.
    Paradoxo? Como assim?
    Sim. Paradoxo. Se não assumes compromissos para teres liberdade, essa liberdade serve-te para quê? Para assumir outros compromissos, certo? Ora se não os assumes, de que te serve a liberdade?
    E como é que fica, com essa conversa toda?
    Fica assim. Tu aqui, deitada no meu colo. Tá muito bom assim. Bom até demais.
    Demais? Nunca! Jamais!

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    Acordou sozinho. Onde é que estava?
    Aquela janela... não era de nenhuma das suas casas.
    Ainda tinha na cabeça o sonho.
    O jornal de 17 de Fevereiro? Para que raio quereria o jornal de 17 de Fevereiro? E o desta semana não havia...
    E depois o acidente encenado naquela curva em gancho a subir.
    Um carro azul petróleo, as mulheres carpindo, o filósofo à conversa e atirando garrafas surrelfadas à camioneta da Sagres, que já no ar se transformavam em formato borgonhês e continham branco de uma cooperativa?
    Não percebia nada do sonho. Estava num grande supermercado. Ou numa sala de baile de uma sociedade recreativa. No rescaldo do acidente. Familiares das vítimas. O filósofo bêbedo.
    E o jornal que não havia, mas o de 17 de Fevereiro mostrava a data, saindo do saco.
    Que raio?
    E ela?
    Onde foi?
    Chamou. Nada.
    E agora? Fugiu-me.
    Já não tinha sono, apesar de ter dormido pouco.
    Fugiu-me. Fartou-se de me aturar.
    Sentou-se na borda da cama, olhando a janela. Um rascante nos beiços.
    O céu azul e vermelho de novo. O dia murchava.
    Ela, nada.
    Percebeu agora que aquela cidade só rimava com ela, sempre com ela. Ela ali ao lado, dizendo disparates ou falando sério.
    Enroscados ou contemplando-se, absorvendo cada minuto do encontro.
    Mas já sabia que não iria ser sempre assim, cada um com a sua vida.
    Ele ali, total e completamente disponível pelo menos enquanto ali estivesse. Ela com a sua vida, os seus compromissos. Era de calcular.
    Por vezes, pensava que pouca gente vivia como ele, sem compromissos de nenhuma espécie, capaz de permanecer à deriva por meses e anos. Pelo mundo.
    Era um deslocado nos dias actuais, no corre-corre das coisas, da contabilidade dos sucessos, na arreganha das migalhas.
    Um homem de sorte, como sempre fora.
    E agora, esperava-a.
    Comprometia-se.
    Só queria que ela voltasse.

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    Que moleza!!!
    Moleza? Como assim?
    Sim, molimoli. Sono. Também quem manda passar noites a discutir as actualidades?
    Não percebi. Onde e quando você passou noites a discutir as actualidades?
    Então não? Tem sido um debate constante, agitado, terrível...
    Ah é? Actualidades? Quer ficar já aqui, no meio da ponte?
    Sabe, é que encontrei uma jornalista, acho que ainda não lhe disse, aqui em Brasília que me tem convocado para debates sucessivos a horas impróprias... Nem sei mesmo se as minhas respostas têm sido satisfatórias...
    Tá brincando? Ou precisa de uns cafés?
    Boa. Me leva a um café. Um café expresso. É isso. Café, muito café.

    Quer o terceiro? Veja lá!
    Não. Tá bom assim, mesmo que o café seja daquelas coisas que não me tira o sono. Bebo dois e durmo em seguida.
    Quer ir dormir? É isso?
    Não. Desculpa. Acho que estou meio atordoado. A comida e o vinho caíram fundo. Onde é que já ia a pizza de ontem à noite...
    E então?
    Vamos embora. Vamos descansar o esqueleto.
    Ah é isso? Tá me dispensando?
    Não! Lá tá você. Não dispenso não. Já basta amanhã quando fôr trabalhar. Por falar nisso, onde é que alugo um carro aqui nesta terra? Não preciso ir ao aeroporto, pois não?
    Não. Eu já lhe indico um local. Tem que ser hoje?
    Não. Me indica o sítio que eu amanhã vou lá.
    Vamos então?
    Vamos.

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