Do outro lado das teclas

Uma história a quatro mãos, separadas por um mar.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Tempos passados

  • 04/04/2004 - 04/11/2004
  • 04/11/2004 - 04/18/2004
  • 04/18/2004 - 04/25/2004
  • 04/25/2004 - 05/02/2004
  • 05/02/2004 - 05/09/2004
  • 05/09/2004 - 05/16/2004
  • 05/16/2004 - 05/23/2004
  • 05/23/2004 - 05/30/2004
  • 05/30/2004 - 06/06/2004
  • 06/06/2004 - 06/13/2004
  • ------------------------------------------------


    E beijaram-se, beijaram-se, rolaram, ela vestida ele não.
    Temos que dar um jeito nisso – dizia ela sorrindo e olhando para onde não devia.
    Tá esperando o quê? Ah, e mais, não fizemos uma aposta? Você não perdeu? Qualquer coisa com escravatura...
    Sei. Sei. Não sei se chegámos a fazer mas me dou como derrotada. Pode mandar.
    Ele mandou. Mandou como um rei de bom senso. Sábias ordens para que fosse obedecido.

    Meu amo, parece que me desempenhei da tarefa. E agora?
    Chega cá. Te darei mais trabalhos em seguida. Mas primeiro, encosta aqui.
    Ela encostou-se no peito dele, de cabeça à banda, num gesto muito dela.
    Diz-me. Em que pensaste enquanto gritavas aos passarinhos?
    No regresso das naus. No torna-viagem.
    Calculei. Temos três semanas para viver. Depois se verá o que acontece.
    É. Aproveitemos então.
    Eu estive pensando também nisso. Quando falavas que eras errante e solitária, não te passava pela cabeça encontrar alguém ainda mais errante do que tu, pois não?
    Não. Acho que não. Também não era a pensar em encontrar alguém que dizia isso. Se era solitária...
    Pois é. Mas não tanto assim. Não tanto errante, nem tanto solitária. Errante mas com compromissos. Solitária mas com família.
    É. Tenho meu trabalho, meus filhotes...
    Já eu tanto posso estar aqui como ali. Como dizia um amigo meu, chego quando chego, abalo quando abalo. Tenho lá a minha gente, pois tenho. Mas não responsabilidades imediatas. Mesmo o monte pode ser gerido à distância. Não há porcos para dar de comer, vacas para dar ração... Os graus de liberdade são inúmeros. Sempre fui avesso a compromissos, o que me conduz a um paradoxo.
    Paradoxo? Como assim?
    Sim. Paradoxo. Se não assumes compromissos para teres liberdade, essa liberdade serve-te para quê? Para assumir outros compromissos, certo? Ora se não os assumes, de que te serve a liberdade?
    E como é que fica, com essa conversa toda?
    Fica assim. Tu aqui, deitada no meu colo. Tá muito bom assim. Bom até demais.
    Demais? Nunca! Jamais!

      |

    ------------------------------------------------


    Acordou sozinho. Onde é que estava?
    Aquela janela... não era de nenhuma das suas casas.
    Ainda tinha na cabeça o sonho.
    O jornal de 17 de Fevereiro? Para que raio quereria o jornal de 17 de Fevereiro? E o desta semana não havia...
    E depois o acidente encenado naquela curva em gancho a subir.
    Um carro azul petróleo, as mulheres carpindo, o filósofo à conversa e atirando garrafas surrelfadas à camioneta da Sagres, que já no ar se transformavam em formato borgonhês e continham branco de uma cooperativa?
    Não percebia nada do sonho. Estava num grande supermercado. Ou numa sala de baile de uma sociedade recreativa. No rescaldo do acidente. Familiares das vítimas. O filósofo bêbedo.
    E o jornal que não havia, mas o de 17 de Fevereiro mostrava a data, saindo do saco.
    Que raio?
    E ela?
    Onde foi?
    Chamou. Nada.
    E agora? Fugiu-me.
    Já não tinha sono, apesar de ter dormido pouco.
    Fugiu-me. Fartou-se de me aturar.
    Sentou-se na borda da cama, olhando a janela. Um rascante nos beiços.
    O céu azul e vermelho de novo. O dia murchava.
    Ela, nada.
    Percebeu agora que aquela cidade só rimava com ela, sempre com ela. Ela ali ao lado, dizendo disparates ou falando sério.
    Enroscados ou contemplando-se, absorvendo cada minuto do encontro.
    Mas já sabia que não iria ser sempre assim, cada um com a sua vida.
    Ele ali, total e completamente disponível pelo menos enquanto ali estivesse. Ela com a sua vida, os seus compromissos. Era de calcular.
    Por vezes, pensava que pouca gente vivia como ele, sem compromissos de nenhuma espécie, capaz de permanecer à deriva por meses e anos. Pelo mundo.
    Era um deslocado nos dias actuais, no corre-corre das coisas, da contabilidade dos sucessos, na arreganha das migalhas.
    Um homem de sorte, como sempre fora.
    E agora, esperava-a.
    Comprometia-se.
    Só queria que ela voltasse.

      |

    ------------------------------------------------


    Que moleza!!!
    Moleza? Como assim?
    Sim, molimoli. Sono. Também quem manda passar noites a discutir as actualidades?
    Não percebi. Onde e quando você passou noites a discutir as actualidades?
    Então não? Tem sido um debate constante, agitado, terrível...
    Ah é? Actualidades? Quer ficar já aqui, no meio da ponte?
    Sabe, é que encontrei uma jornalista, acho que ainda não lhe disse, aqui em Brasília que me tem convocado para debates sucessivos a horas impróprias... Nem sei mesmo se as minhas respostas têm sido satisfatórias...
    Tá brincando? Ou precisa de uns cafés?
    Boa. Me leva a um café. Um café expresso. É isso. Café, muito café.

    Quer o terceiro? Veja lá!
    Não. Tá bom assim, mesmo que o café seja daquelas coisas que não me tira o sono. Bebo dois e durmo em seguida.
    Quer ir dormir? É isso?
    Não. Desculpa. Acho que estou meio atordoado. A comida e o vinho caíram fundo. Onde é que já ia a pizza de ontem à noite...
    E então?
    Vamos embora. Vamos descansar o esqueleto.
    Ah é isso? Tá me dispensando?
    Não! Lá tá você. Não dispenso não. Já basta amanhã quando fôr trabalhar. Por falar nisso, onde é que alugo um carro aqui nesta terra? Não preciso ir ao aeroporto, pois não?
    Não. Eu já lhe indico um local. Tem que ser hoje?
    Não. Me indica o sítio que eu amanhã vou lá.
    Vamos então?
    Vamos.

      |

    ------------------------------------------------


    Prrrrriiiiiiiiiiiii, prrrrrriiiiiiiiiiiiiiiii
    Qué isso, está querendo espantar os peixes?
    É. Esse é o famoso apito, digamos grito de chamada dos Renault Clio. Utilizo desde 1990. Já sei que obedecem, pelo menos os de matrícula portuguesa. Esse acho que não, temos um problema de sotaque e um regresso nessa ventania.
    Pois é, caminho de volta.
    Mas para você não se queixar, é fácil. Tá preparada para viajar às arrecuas?
    Eu, fazer esse caminho recuando? Jamais recuo. Olha lá, você não me conhece!
    Então anda cá! Vê? Assim se agarra a mim e vai retrocedendo, não recuando, nem retirando, protegida do vento. Isso, pode encostar a cabeça.
    Assim não chegamos nunca ao carro.
    Ah não? E está com muita pressa? Ajuda até a digestão.
    É! Pode ser...
    Ao mesmo tempo, te mostro como erramos juntos, como te levo contigo e como me levas também.
    Me beija!

    As pontes... Sabe que fui praticamente criado entre pontes? Vi elas crescendo no papel, a terra movimentada, as sondagens, o betão. E quase morria numa também...
    Morria?
    Sim. Um dia eu te mostro onde. Te mostrarei sim. Te mostrarei o nosso velho país de alto a baixo.
    Quer dizer que erraremos juntos?
    Você ainda duvida?

      |