Do outro lado das teclas

Uma história a quatro mãos, separadas por um mar.

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Tempos passados

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    Puxou-a e levou-a para perto da janela.
    Lá fora, a noite iluminada da cidade de João Bosco, de Kubitschek, de Lúcio Costa e de outros sonhadores.
    Vira em tempos projectos e sonhos para esta cidade.
    Longe, muito longe de se imaginar também nessa condição.
    Não falavam.
    Apenas parecia que ela lhe mostrava tacitamente o esplendor dessa empresa poucas vezes repetida na história do homem.
    Quem poderia saber o que diziam um ao outro sem palavras?
    Saberiam eles apenas que aquela hora, aquele instante seria continuamente repetido enquanto vivessem. Entrava-lhes na pele por todos os sentidos.
    Lembras-te de te ter falado numa janela, cem anos inteiros, que não mais verei?
    Ela lembrava-se e lembrava-se também da interrogação que essa frase lhe suscitara. Mas não o exteriorizou.
    Lembro. Estás a vê-la agora?
    Não, menina. Não mais a verei. Mas guardo-a sempre, sempre. Morrerei talvez debruçado nela.
    Era assim tão especial? O que se via de lá?
    Era muito especial, sempre foi. Lembras-te de eu te dizer que sempre apreciei as minhas coisas? Semprei gostei do que tinha, nunca aspirei a mais. Bastava-me conservá-las.
    Mas as coisas se perdem... se perdem as pessoas, as coisas, o tempo...
    É. Há porém coisas que não imaginamos perder.
    Não?
    Acho que não. Tenho a certeza. Nunca pensei perder aquela janela.
    E o que se via de lá? Campos, cidades, o mar?
    Não. Só um alto muro branco, o céu, um fio de telefone e muitos pardais ao nascer do dia. Era apenas isso o que eu via. Nada mais. Era tudo e tudo me bastava. Nenhuma janela das casas que possuo, algumas delas com belas paisagens, se comparam a essa.
    Fascinava-te ver os pássaros?
    Fascinava-me abrir aquela janela em madrugadas quentes de verão, adivinhando calores de 40 graus e ouvir os pássaros, vê-los pousar no fio, saltitar como funâmbulos... recortarem-se no azul cru do céu que por sua vez contrastava com a brancura do muro. Um horizonte muito curto e ao mesmo tempo vastíssimo. Um quase muro de prisão e muitas asas...
    Ela voltou-se e beijou-o ternamente e depois cantou: E uma asa...
    É. Quem diria? Janelas, asas, azul, cem anos...
    Porquê cem anos?
    Foi o tempo que essa casa esteve na família. Construída no início do séc.XX, vendida no início do séc. XXI. Perdida para sempre, perdidas não as memórias, mas a memória das coisas. A alma de uma casa. Uma casa assim é um avô. Uma pessoa. Nunca houve casa no mundo melhor do que essa. Para além de tudo, era bonita e muito cobiçada. A melhor casa daquele sítio, segundo alguns. A melhor casa do mundo e talvez uma das melhores daquela vila... e... sem querer, já estou dando a entrevista. Jornalistas são isto. Fazem falar o entrevistado com técnicas que até o Diabo desconhece...
    Ah, é? Toma!
    O murro veio baixo e ela acabou derrotada...

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    Os momentos são coisas estranhas...
    São?
    São. Quantas vezes é que você tem a definitiva certeza de que está a absorver para a história o mínimo detalhe das coisas, que aquele é O momento?
    Poucas. Mas algumas, algumas. Esse é um deles, para si?
    É. Julgo que sim. Mas só a memória o dirá. Como disse, os momentos são coisas estranhas. No meu armário de recordações intensas, tenho algumas que não sei porque lá estão. Horas vulgares, dias vulgares, situações vulgares lado a lado com situações de dor forte, de alegria exuberante. E o mais estranho, é que as que eu acho mais vulgares são as que mais parecem vir ao de cima, como se quisessem relembrar-me de quanto vulgar eu sou...
    E este é o quê?
    Este é definitivamente grandioso, sua boba. Você sabe disso...
    Eh eh, brindemos.... O vinho tá fazendo efeito...
    O vinho, o ambiente, tudo faz efeito.
    Beijaram-se novamente, arrebatou-a e sentou-a no seu colo.
    Como é que é? A entrevista sai ou não sai?
    Sai! Ah sai! Claro que sim. Agora quando eu não sei...
    Não sabe?
    Não. Quero fazer-te milhões de perguntas e nenhuma. É isso que eu quero. Talvez tenhamos que imaginar outra forma de entrevista.
    Sim? Qual?
    Ainda não sei, estou estudando a abordagem...
    Ah sim? Mais uma? Diferente desta vez?
    O que é que você tá dizendo? O quê? O quê?
    Nada... Estou curioso com o método...
    Já vais ver... Já vais ver...

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    Pois... eu bem dizia que o jantar estava servido.
    Satisfeito?
    Sei não. Acho que ainda há lugar para mais um pedacinho. Deixa ver qual seja.
    Ah é? Vai tirar mais uma lasquinha? Deixa eu ver...
    Lançou-se sobre ele, encostou-o à parede, e se enganchou todinha.
    Já não havia pois horas, horários, regulamentos. Valia tudo.
    Aproveitando o tempo...
    O tempo e o modo, digo eu, para não dizer outra coisa...
    Diz, diz...
    Não digo mais nada.
    Venceram-se debaixo de água.

    Quem será? Você está esperando alguém? Conhece ALGUÉM aqui?
    Deve ser a moça da entrevista.
    A moça da entrevista, a moça da entrevista. Sei...
    Deixe-me ir e vista-se. O jantar está servido. Não ouviu isso uma hora atrás?
    Deve estar friozinho...
    Lá frio está. Mas despache-se.

    Quem era?
    Olhe para a mesa e veja.
    Ah, o entregador de pizzas.
    Pois é, foi o que se pode arranjar. Mas ainda tem estes acepipes que eu preparei há horas...
    E vinho.
    Claro, comprámos o vinho para o beber. Não foi para fazer reserva.
    E porque não? Não estará por aqui para o bebermos quando envelhecer?
    Compraremos novas e novas garrafas, sonharemos com reservas de vinho e compraremos mais...
    Em que prazo?
    Nunca estaremos fora de prazo!
    Sei...
    Menina, por favor, tome o seu lugar.
    Já tomei. E tomarei.
    Sei que sim. Graças a dois velhos marinheiros...

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    O jantar está na mesa!
    Quê? Como?
    Dormiu! Você adormeceu feito um anjo, menina. São horas de dar ao dente. Já se esqueceu de comer?
    Comer? Comer?
    Sim, claro. Jantares. Almoços. Parece que entrámos numa via directa ao lado dessas coisas triviais. Hora de fazer uma concessão. Afinal, havia um jantar prometido, lembra?
    Lembro! – o sorriso derramava-se-lhe sobre o corpo todo.

    Sabe, uma das coisas que mais me entristece na vida de hoje é o apagamento deste ritual da mesa. As conversas, os olhares, o sabor e o cheiro da comida, um certo formalismo... tudo se apagou, na voragem do tempo que urge.
    É! Correria danada, comendo porcaria à pressa o tempo todo...
    Brindemos pois a uma refeição contemplativa. Sem pressas, sem atropelos, sem sobressaltos que não sejam os nossos brindes...
    Ela levantou-se, correu e sentou-se ao colo dele.
    Brindemos, pois... aos sobressaltos!
    Ora, se não estou enganado, tenho pressa de jantar... deixa ver... é, sim... não posso demorar!
    O QUÊ? Que conversa é essa? QUEM você conhece aqui em Brasília?
    Recebi um fax a confirmar uma entrevista para depois do jantar. Marquei hoje de manhã. A moça deve estar a chegar.
    Ah! Essa moça! Quase ia esquecendo que você marcou com ela.
    Pois é. Onde acha que a devo receber?
    Ah, mas eu sei. Deixa comigo.
    Tudo como a menina disser...

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    Com muito carinho, tocava-lhe o rosto, beijava-lhe as lágrimas.
    O que é isso, agora?
    Sei lá. Esse mar no meio, a gente o secou, mas por quanto tempo?
    Vivemos sempre com saudade do passado, do futuro...
    Porque não te tinha, não te terei...
    Sei... dizer o quê?
    Pois é! – as lágrimas escorriam-lhe dos grandes olhos, mesmo que um sorriso escondido parecesse querer desabrochar.
    Daremos um jeito. Que jeito, não sei. Mas daremos.
    Como? Que jeito?
    O futuro... as pessoas teimam em dizer que vão mudar a vida, dar uma volta às coisas, começar de novo... nada mais errado, nada mais impróprio.
    Porque você tá dizendo isso?
    Porque não existe essa coisa de mudar o rumo, voltar atrás... As pessoas é que traçam rotas imaginárias, umas mais rectilíneas, outras loxodrómicas e pensam que o seu destino é esse.
    Mas esquecem-se das tempestades, das correntes, dos leixões, que as mandam ao fundo ou para outras paragens. E esquecem-se sobretudo do mecanismo interno, que a sua vontade não é reduzível a um traço num mapa. E que talvez essa vontade nem sequer exista. Dizendo de outra forma, não se foge nem se altera o destino. Ele é o que tem que ser.
    Êpa. E o nosso, qual é?
    O que fôr, soará. Sabe que mais?
    O quê?
    Colou-se a ela, riu-se e só disse:
    O destino é aqui. Ponto com, ponto bê erre.
    Não vale. Eu é que digo isso!
    Será?
    É pçível, é pçível!
    Ah, é? Então vamos ver se é pçível...

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